A Rede Periférica Antifascista e sua comunicação underground como ferramenta da arte e luta popular

Em entrevista para o portal do Mapa da Mídia Independente e Popular de Pernambuco, o Coletivo M – 1, um dos cinco que fazem parte da Rede Periférica Antifascista, conta como utiliza a cena underground como instrumento de comunicação popular para reverberar vozes da arte e lutas periféricas.  A rede “segue construindo espaços de educação e comunicação populares, através de ações (contra)culturais, que estimulam o exercício da arte como meio de expressão e compartilhamento de ideias e fazeres coletivos”.

Conheça aqui a história e estratégias de comunicação dos coletivos que encontraram “na cena hardcore, não apenas uma batida diferente, mas um ambiente de contracultura que, antes de tudo, é anticapitalista e atua contra as mais diversas formas de opressão” nesta conversa com Guill, integrante do M-1.

Por Martihene Oliveira

O que é o Coletivo M-1 e qual o seu objetivo quando se apresenta como um grupo de underground que atua com comunicação popular?

Guill – A ideia do Coletivo M-1 surge em 2001, junto com o início da Arquivo Morto, no bairro de Maranguape I, em Paulista. Na época, o objetivo era fazer com que a banda pudesse circular colocando, além das músicas, das falas e do zine, uma experiência coletiva de movimentação (contra)cultural no bairro de origem da banda. Hoje, ao olhar para trás, observamos várias coletividades e ações que foram realizadas ao longo do tempo ligadas a essa ideia inicial. E foi a partir dessas experiências que o Coletivo foi amadurecendo e, hoje, segue construindo espaços de educação e comunicação populares, através de ações (contra)culturais, que estimulam o exercício da arte como meio de expressão e compartilhamento de ideias e fazeres coletivos. Pensamos que, a partir desse exercício, potencializamos na periferia uma forma alternativa e pautada na autogestão de reverberar vozes e estimular novas coletividades correlatas de arte e luta popular nas periferias. 

Falando da cena underground, o que ela é e qual a sua relação com outras iniciativas independentes, tanto da música quanto com coletivos e grupos de outras áreas da cultura e da comunicação?

Guill – É bem difícil pensar um conceito de cena underground. Esse título acaba abarcando muitas possibilidades de atuação artística da música independente, por exemplo. A Arquivo Morto e o Coletivo M-1 estão alinhados com uma perspectiva ligada uma leitura mais radical dessa ideia de uma dimensão subterrânea da música e da ação coletiva. Radical no sentido de ir à raiz das questões. Ou seja, para nós que enxergamos a música como meio de expressar graves e profundos problemas sociais, é fundamental não só apontar as consequências dessas problemáticas, mas, também, identificar suas causas estruturais. Sendo assim, encontramos na cena hardcore, não apenas uma batida diferente, mas um ambiente de contracultura que, antes de tudo, é anticapitalista e atua contra as mais diversas formas de opressão. Isso gera nessas bandas e coletivos compromissos que estão muito além da construção da profissionalização e realização de carreiras artísticas. Relevando assim, uma leitura da cena underground que não a percebe como estágio/etapa onde artistas que ainda não conseguem circular no mainstream se apresentam. Essa radicalidade aponta, inclusive, o desafio da resistência da manutenção da sua própria existência. É daí, que surgem formas mais coletivas e autogestadas que podem dialogar com outras formas de atuação artística, mas que irão enfrentar desafios de sintonia entre diferentes objetivos e processos organizativos.

Banda Arquivo Morto no Abril Pro Rock 2022 – Foto: Sócrates Guedes

Sobre território e público-alvo, quem são eles e quais as estratégias, inclusive de comunicação, utilizadas pelo grupo para se comunicar com esse público?

Guill – O Coletivo M-1, ao vivenciar a resistência dessa perspectiva mais radical de cena underground, compreende que está muito distante de se aproximar da estética da cultura de massa. Sendo assim, enxerga que a realização das suas ações se expressa como uma oportunidade nas periferias de experimentação dessas diferentes linguagens artísticas. Desse modo, temos sempre a estratégia de construir ocupações de espaços públicos para que a existência dessa dimensão estética não esteja isolada, mas seja parte da dinâmica das comunidades. A principal ideia não é disputar com outras linguagens artísticas existentes nas comunidades, mas coexistir e construir mais uma possibilidade das pessoas que vivem nas periferias se identificarem com a arte e expressarem suas ideias. A comunicação acaba sendo, de certa forma, espontânea no movimento cotidiano comunitário e hoje é retroalimentada pelas redes sociais a partir de estratégias de mobilização e registros que são publicados durante e após as atividades.

A cena underground carrega muitos estereótipos, entre eles, a ideia de que existe apenas uma linguagem, a do hardcore, e esta é marcada pelo extremismo, com uma mensagem pesada, entendida por muitos até com um viés mais conservador e que não comunica com todos os públicos. Você pode comentar sobre isso?

Guill – Como disse anteriormente, pensando de forma mais ampla, seria difícil interpretar e avaliar esses estereótipos. A cena do Metal, por exemplo, eu não conheço bem e não poderia opinar de forma mais profunda sobre ela. Posso afirmar que, de fato, existe uma cena mais alinhada ao hardcore. É dessa cena que nós fazemos parte. Mas, mesmo dentro dela, existe um processo histórico das últimas décadas que traz muitas mudanças e, também, existe uma constante dimensão de autocrítica que buscamos construir nesses últimos anos. Pode existir, no decorrer dessas décadas, alguns estereótipos que ficaram cristalizados no imaginário social, mas que na atualidade já podem ter sido superados. A cena hardcore está distante de ser uma cena conservadora, mas não está livre de práticas que revelam dimensões estruturais das opressões. Desse modo, é nítida a necessidade de falar sobre essas questões para fora, mas também, sempre para dentro de quem vive e constrói os rolês. Acerca da dificuldade de comunicação, além das questões já citadas, podemos reforçar o caráter estético e ideológico que nem sempre facilita ligas mais imediatas com outros públicos. Mas, vale apontar, que iniciativas como essa entrevista, por exemplo, quebram preconceitos, estimulam a curiosidade de um público mais amplo e aproximam diferentes dimensões do fazer artístico, potencializando esses diálogos.

Roda de diálogo em edição do Maranguape Barulho e Atitude – Foto: Sócrates Guedes

O hardcore, historicamente falando, teve momentos marcantes em diversos contextos políticos. Trazendo para os dias do M-1, como vocês trabalham essa temática da política? Houve algum momento que ficou marcado para vocês?

Guill – O hardcore é luta política traduzida em som e atitude. Então, as letras das bandas, seu discurso e suas ações diretas devem estar sempre ligados às conjunturas políticas. Obviamente, cada banda e cada coletivo acabam atuando nisso de formas diferentes. Quando dialogamos com pessoas de bandas da década de 1980, por exemplo, elas nos trazem os desafios de construir as movimentações de uma cena anticapitalista em plena ditadura militar. Sem dúvidas, para o período de existência do Coletivo M-1, sendo um coletivo antifascista, nós vivemos o momento mais desafiador nos últimos anos com o crescimento da extrema direita e o avanço da estratégia fascista no Brasil. Enxergar um projeto fascista em andamento, se comunicando de forma eficiente com as massas, ganhando espaços decisivos na dimensão institucional da democracia burguesa e ampliando a ameaça de um novo momento de estado de exceção pede muita energia e coragem para manter viva e forte a bandeira de luta que a gente sempre levantou. Então, as ações do Coletivo M-1 estão sempre promovendo o estímulo à leitura crítica da realidade e apontando questões necessárias para despertar nas pessoas a consciência de classe e a adesão às lutas que precisam ser travadas na construção do poder popular.

Há outros coletivos que atuam com o antifascismo em Pernambuco e inclusive são parceiros do M-1. Como se dá essa relação entre os coletivos underground antifascistas, que tipo de trocas e parceria vocês desenvolvem para divulgar seu som e sua mensagem?

Guill – Nossa atuação é sempre pautada numa perspectiva mais horizontalizada e coletiva na construção das ações. Desse modo, a resistência necessita de uma atuação em rede para dar conta de demandas fundamentais como o fortalecimento da formação política e a própria construção dos rolês. A  Rede dos Coletivos Periféricos Antifascistas – Rede Periférica Antifascista é um exemplo disso. Hoje composta pelo Coletivo M-1, Front Antifa, Olhar Periférico, Várzea Undergound e o Coletivo Fervo, estamos em 5 territórios da RMR: ( I (Paulista), Paratibe (Paulista), Caetés I (Abreu e Lima), Várzea (Recife) e Alto José do Pinho (Recife). Esses coletivos compartilham constantemente informações, organizam agendas de atividades e se fortalecem mutuamente nas articulações, mobilizações e atividades desenvolvidas. Desse modo, amplificamos nossa capacidade organizativa e, consequentemente, de reverberação das nossas ideias.

Bandeira da Rede no show dos 35 anos da Devotos – Foto: Fran Silva

Quais os maiores desafios da cena underground em Pernambuco

Guill – Em termos de coerência política, penso que um grande desafio é ampliar a integração da cena com outras dimensões de arte que apresentam foco no fortalecimento das lutas populares. Além disso, ampliar a participação política das pessoas que compõem essa cena em outros espaços da dimensão prática da política como os movimentos sociais. Sobre uma perspectiva mais ligada à produção cultural, penso que existe, em andamento, um amadurecimento relacionado à captação de recursos públicos e outras formas de assegurar a sustentabilidade dos rolês. Mas, vale reforçar, que esse amadurecimento precisa garantir que a essência de luta coletiva dessa cena não sofra graves danos ao se conectar, mais profundamente, com mecanismos que estimulam a competição e a adaptação do fazer cultural a moldes que possam anular o caráter subversivo e, sendo assim, radical dessa expressão de arte periférica. Transitar nesses espaços sem perder a essência anticapitalista é um grande desafio para a cena underground antifascista.

Quais os projetos futuros da M-1 e do underground antifascista aqui no estado?

Guill – A ideia central é ampliar e fortalecer a Rede Periférica Antifascista. Desse modo, os coletivos que a compõem podem construir estratégias de intervenção horizontalizadas e planejadas nos seus territórios de atuação. O Coletivo M-1, em especial, vem buscando retomar ações que foram paralisadas no período de pandemia e seu principal objetivo é se manter vivo na resistência de construir contracultura a partir de processos colaborativos na comunidade.

Gostaria de acrescentar alguma coisa?

Guill – Agradecer pelo espaço e nos colocar sempre à disposição para colaborar com um jornalismo que busca potencializar olhares críticos, dando voz a formas de ser e estar na sociedade que são marginalizadas exatamente pelo seu caráter revolucionário.