Por Martihene Oliveira
O poder da agroecologia vai além do fato de plantar sementes, lançar o adubo, regar e colher. Em Recife, coletivos como a Associação Kapi’wara e Chié do Entra têm mostrado que uma horta comunitária, por exemplo, pode ser uma ferramenta importante para a comunicação. Comunicação esta que em diversas periferias recifenses reverbera vozes urbanas, contrapondo-se ao estereótipo de que a agroecologia está restrita apenas ao universo rural.
A Associação Kapi’wara e o Coletivo Chié do Entra são dois grupos de comunicadores que se utilizam dos ofícios da agroecologia para pensar e debater a comunicação, construindo conceitos da ciência na periferia enquanto envolvem a comunidade na luta pelos direitos sustentáveis, preservação ambiental, mas também igualdade de classe, gênero e raças. O primeiro deu origem ao segundo através das ações do eixo ambiental do programa Pulsa Bairro, desenvolvido pelo Instituto Shopping Recife.
Para falar de comunicação e agroecologia em uma linguagem acessível e popular, a Kapi’wara se utiliza de rodas de conversa, cines debate e oficinas formativas como as que aconteceram durante o assessoramento realizado na comunidade Entra Apulso, no bairro de Boa Viagem, zona sul recifense. “Nós fomos o grupo, contratado para atuar no Pulsa Bairro, que assessorou a criação do Chié do Entra. Iniciamos as atividades durante a pandemia e optamos por falar de juventude e formação de coletivos, a partir da comunicação comunitária. O Instituto Shopping Recife identificou um grupo de moradores e moradoras, principalmente mulheres negras e mães, com o perfil de atuar na agroecologia urbana. Em seguida, começamos uma formação em educação ambiental e o grupo demonstrou uma vontade de se auto-organizar”, afirmou Nemo Côrtes, integrante da Kapi’wara.
A parceria entre a Kapi’wara e o Instituto Shopping Recife ocorreu a fim de ampliar as ações de cuidado com o meio ambiente no território. Essa articulação foi o pontapé inicial para a criação do coletivo Chié do Entra. O coletivo iniciou suas atividades, enquanto empreendimento solidário, realizando a reciclagem do óleo de cozinha para a produção de sabão ecológico a fim de reduzir os impactos do óleo que estava entupindo os esgotos da comunidade. “O coletivo foi construindo a sua autonomia e a gente continuou trabalhando em parceria. Hoje, o Chié do Entra tornou-se um grupo de referência comunitária, sendo contratado pela própria instituição que o formou, o Instituto Shopping Recife, para desenvolver ações no território de Entra Apulso, assim como conseguiu ser contratado pela Secretaria de Agricultura Urbana do Recife para prestar serviço de educação ambiental em outra comunidade, Caranguejo Tabaiares. Já é o segundo ano de atuação na comunidade e o coletivo está construindo sua sustentabilidade financeira”, complementou Nemo.
Equipes do Chié (Rafa, Evaldo) e Kapi’wava (Nemo, Abul e João) conversam com crianças. Crédito: Ayan
Assim, o Chié do Entra se constitui como um coletivo formado por moradoras e moradores que atuam no território como agentes ambientais, promovendo a consciência ambiental agroecológica para uma população que só obteve o saneamento básico em 2019 e que começou a lidar com problemas ocasionados por antigos hábitos. “O grupo atua no intuito de mitigar os impactos ambientais na comunidade, reciclar resíduos que antes eram descartados (óleo de cozinha, restos de alimentos), e divulgar/educar a partir de rodas de conversa, rondas observativas nos locais com predisposição a acúmulo de lixo, oficinas ambientais e a troca por sabão e adubo para os comunitários parceiros”, afirma Roni Paixão, integrante do Chié do Entra.
“O direito à terra, à água, à produção, à reforma agrária, estão diretamente ligados ao direito de comunicar. Entendemos a comunicação enquanto um direito não somente para a criação de produtos para dentro, com diálogos entre técnicos, agricultores e comunicadores, mas também é um diálogo para fora que se comunica com a sociedade”, é o que afirma Giuseppe Bandeira, jornalista, técnico em agroecologia e integrante da Associação Kapi’wara, fundada em 2014, por estudantes do Serviço de Tecnologia Alternativa (SERTA), que se apresenta como uma organização da sociedade civil que “forma pessoas para atuarem na transformação das circunstâncias econômicas, sociais, ambientais, culturais e políticas e na promoção da agroecologia no campo e na cidade”.
Alguns integrantes da Associação Kapi’wara foram uns dos primeiros educandos do curso do SERTA com origem na área urbana e enxergaram a possibilidade da ampliação do impacto das ações agroecológicas ao fazerem a junção da agroecologia com a comunicação e a cultura. Da sala de aula para as comunidades periféricas, o público-alvo é todo morador de favela, entre estes, negras e negros, LGBTQIA+, pessoas em situação de vulnerabilidade social e impactadas pelo racismo ambiental.
“Consideramos a comunicação e a cultura elementos primordiais para o nosso trabalho. São estes elementos que conferem um elo de sustentação entre sujeitos, territórios, identidades e práticas, com mais inclusão, democracia, justiça e diversidade”, complementa Giuseppe.
E o ato de comunicar aparece na formação de jovens multiplicadores da agroecologia, com temáticas sobre meio ambiente, etnia, gênero, políticas públicas, juventudes e realizações de projetos como o Cine Capibaribe, por exemplo, quando conversam com moradores através do audiovisual ou, a partir de um grupo de whatsApp, para mobilizar mutirões e acompanhar os jovens envolvidos nas ações em seus territórios.
Para Giuseppe, na Agroecologia há um espaço de encontro de diversas lutas: “quando a gente fala sobre ela, falamos de várias dimensões. É um conceito que também está ligado aos nossos ancestrais. Um espaço de diálogo, convergência, comunicação, multiplicação de saberes, que fomenta geração de renda através de um debate interseccional”. Os impactos sociais e ambientais são vistos nos trabalhos em comunidades, sítios, na beira do rio Capibaribe, em tecnologias sociais, no tratamento das águas, entre outras atividades.
7ª Edição do Cine Capibaribe realizado pelo Kapi’wara, no Sítio Canoah, na Várzea. Crédito: Rafael Amorim
Os dois coletivos comunicam pelas redes sociais a rotina de seus trabalhos. Para além do universo digital, o objetivo é explorar essa comunicação comunitária e agroecológica com debates que fortaleçam seus públicos-alvo. Roni Paixão também reconhece a importância da comunicação para o Chié do Entra: “a gente acredita que a comunicação é a porta sempre aberta, ainda que o morador não esteja de fato no Entra Apulso, ele pode estar nas redes sociais a qualquer momento do dia, em qualquer lugar. E a informação estará lá, fácil de ser acessada, por qualquer pessoa. A agroecologia depende desses canais de comunicação, como qualquer outra coisa no mundo globalizado. E ela se encaixa no sentido de promover mudanças de hábitos positivas na tentativa de preservar o meio em que vivemos. É na nossa página que a gente tem a oportunidade de mostrar a comunidade que queremos ter e ela está ligada a uma maior conscientização do morador para com o próprio território”.
O Chié divulga no Instagram o calendário de atividades, anúncios dos mutirões que acontecem todas às terças-feiras e os resultados das ações. “As pessoas já se acostumaram. Nós damos uma volta pela comunidade realizando limpeza, aguando as plantas; nas quartas tem oficinas de sabão e coleta de óleo, e sempre vamos testando novas formas de comunicar, como o uso de vídeos, bicicletas anunciando com caixas de som, entre outros formatos”, diz Roni.
Recentemente o Chié do Entra foi selecionado no edital Conecta Perifa e a série “Composta Entra Apulso”, com produção de cinco episódios, que fala sobre os impactos da compostagem e o tratamento de resíduos, será exibida nas redes do coletivo para dar visibilidade aos moradores e à temática da compostagem.
A Praça Jardim Evandro Cavalcanti, inaugurada no ano passado na comunidade Entra Apulso, contém uma horta e é ponto de encontro e reunião das moradoras, um símbolo de como é possível implementar um projeto agroecológico no espaço urbano. “Evandro Cavalcanti foi um grande amigo nosso, era o cara mais velho do grupo, com 46 anos, mas tinha uma perspectiva muito jovem. Ele teve uma identificação com a agroecologia que transformou a vida dele e, infelizmente, antes da realização de uma primeira feira, ele fez a passagem dele. Foi um acontecimento marcante que mexeu com todo o coletivo”, contou Nemo Côrtes, do coletivo Kapi’wara.
É importante dizer que o território da Entra Apulso é uma das mais antigas ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) do Recife, tendo sido instituída em 1988, pela Lei de Uso e Ocupação do Solo, e consequência de muita luta e resistência da comunidade. Após a requalificação da nova AV. Bruno Veloso, os grupos que atuam no território se incomodaram com o acúmulo de lixo que estava ocorrendo em um dos canteiros e visualizaram a oportunidade de dar outro uso ao espaço, estimulando o cuidado coletivo através da implantação do Jardim Evandro Cavalcanti. Para tanto foi necessária uma articulação com a prefeitura do Recife, a EMLURB, os moradores e as organizações do território.
Dona Irene, mãe de Evandro Cavalcanti. Crédito: Ayan
“Com a passagem de Evandro, a gente olhou pra esse lugar com outros olhos, né?! Buscamos diálogo com a prefeitura, a EMLURB e os moradores do entorno, inclusive familiares de Evandro que moram bem pertinho. Através do I Pulsa-ação Agroecológica, evento ambiental e colaborativo do programa Pulsa Bairro, conseguimos contratar um marceneiro da própria comunidade para fazer os canteiros e a cerca de madeira para proteger o local. Durante o evento, fizemos a celebração de criação do Jardim Evandro Cavalcanti com a família dele, amigos, crianças e organizações. Virou ponto de encontro e de reuniões. Foi uma semente que plantamos para ajudar o processo de transição agroecológica do território”, concluiu Nemo.