Por Martihene Oliveira
Fazer comunicação popular é também visibilizar a voz de mães e filhos das favelas. Para falar dos problemas que todo mundo vê mas nem sempre sente, iniciativas de comunicação nos territórios periféricos têm levado informação a quem tem acesso restrito a notícias de suas próprias comunidades e provocado a conscientização para a luta por direitos.
A vivência do coletivo Fala Alto é um exemplo. Criado por três mulheres em 2018, inicialmente com o objetivo de promover discussão no território sobre violência doméstica – já que a mãe de uma delas vivia em constante situação de abuso —, o Fala Alto ampliou sua área de atuação com foco nos problemas provocados pela omissão e descaso do Poder Público na favela.
Na perspectiva do direito à cidade, o coletivo – composto de homens e mulheres periféricas – faz uma comunicação de redes e ruas por meio de protestos, passeatas, cartazes, faixas, rodas de conversa, alto-falantes, de porta em porta por onde residem os moradores do Alto do Pascoal, Alto do Céu, Alto Santa Teresinha e Córrego do Deodato, no bairro de Água Fria, zona norte do Recife, repercutindo todas essas ações no território online das redes sociais.
“A nossa classe sendo atacada, a gente mantém ela informada. As redes nos ajudam a dar visibilidade à nossa luta e nos permitem criar pontes com outros coletivos, mas entendemos também que nem todo mundo tem acesso ao digital na comunidade, e esse ‘nem todo mundo’, às vezes é uma grande maioria, por isso olhar nos olhos, através do trabalho de porta em porta, nos permite sentir o povo”, afirma Kayo na Real, integrante do coletivo. “Não temos grana direto, mas anunciamos no Insta que precisamos de xérox, por exemplo, e aí alguém chega junto e nos viabiliza o recurso”, complementa.
Ele reconhece que as parcerias também são ferramentas de fortalecimento para o grupo, já que em diversos momentos pode contar com esses apoios para articular e ampliar as mobilizações. “Temos parceria com uma rádio comunitária do Alto Santa Teresinha, que é a Eco Cultural, fazíamos debates sobre a Reforma da Previdência, nos tempos do presidente Temer. Já falávamos sobre o fascismo na época em que o bolsonarismo se criava. A gente convidava alguém e discutíamos outros temas como violência de gênero, pedofilia…”.
Uma das pautas que mais se destacaram nas atividades do coletivo foi a reivindicação pela construção da creche do Córrego do Deodato, que desde o ano de 2007 foi foco de luta dos moradores. Na gestão do ex-prefeito João Costa – PT (2009/2012), a Prefeitura do Recife se comprometeu a construir uma nova sede para a escola do bairro e uma creche. A escola ficou pronta e uma casa ao lado foi desapropriada para a creche que nunca saiu do papel.
Reivindicar por creches, entre diversas demandas de uma comunidade, é considerar que elas são importantes instrumentos de apoio às famílias em qualquer periferia no Brasil. Se uma rede de apoio é essencial para pais e mães que não vivem em situação de pobreza, para pais e mães periféricos, principalmente se forem solo, um espaço seguro e confortável que ampare suas crianças é fundamental, mas, mesmo que já se saiba disso, a falta das creches é um assunto que se arrasta e isso precisa ser dito.
Por conta do descaso e da negligência do Estado, a quantidade de mães brasileiras que se desdobram entre trabalhar fora de casa e cuidar da casa e dos filhos, sem apoio do Poder Público, é enxergada a olho nu. Pesquisa realizada em 2019 pelo Observatório do Terceiro Setor informa que famílias chefiadas por mulheres, com filhos de até 14 anos de idade, por exemplo, perfazem o total de 56,9% em situação de pobreza e esse percentual se agrava se a chefe de família for uma mulher preta ou parda, 64,4%.
Carolina Barros é uma mulher negra de 27 anos, integrante do coletivo Fala Alto e companheira de Kayo na Real, homem negro, 31. Eles são mãe e pai de Iara Karê, 5, e Onirê Raoni, 1 ano. As duas precisam da creche. O Córrego do Deodato, território principal de atuação do coletivo, reúne, junto com as comunidades vizinhas, mais de 547 crianças em idade de creche, conforme explicou Carolina em uma audiência pública na Câmara Municipal do Recife, em 2021. Das crianças apontadas por ela, 80% eram pretas ou pardas. A provocadora social, que também é advogada, fez fala de protesto na reunião e apresentou a demanda, que segundo a mesma, há quase 50 anos já era pauta de luta na comunidade.
Para levar Iara à creche, Kayo descreve o percurso: “O Córrego tem muitos altos: Pascoal, Terezinha, Alto do Céu…minha filha tem que ir pra creche da Bomba do Hemetério (bairro vizinho). A gente desce uma escadaria e sobe outra maior, caminha mais um pouco e desce uma ladeirona. Todos os dias, é todo esse rolé e é por isso que compramos essa briga. Uma vez que o espaço já estava de pé, era só reformar a estrutura, mas não, por mais de 13 anos, víamos o espaço se acabando”, afirmou.
Ele, que também é fotógrafo e videomaker do coletivo, conta que já apanhou de segurança de prefeito quando protestava em mobilização do Fala Alto: “Era o dia do aniversário de Recife e Olinda, 12 de março de 2019. O prefeito Geraldo Júlio (PSB) chegou aqui no Alto do Pascoal com sua equipe para inaugurar a upinha da comunidade. O Fala Alto chegou lá pra entregarmos um documento apresentando dados. Os seguranças do prefeito empurraram as meninas do coletivo enquanto eu levantava um cartaz com a pergunta ‘cadê a creche, bença?’, na mesma hora, levei um tapa de outro segurança, dei outro tapa de volta”.
No dia 13 de março de 2023, após 15 anos de luta, a creche Dona Cininha, que já não serve mais para as crianças de 2007, finalmente saiu do papel. “Três prefeitos passaram por aqui: João da Costa (PT), que foi quem fez a promessa; Geraldo Júlio (PSB), que passou 8 anos nos enrolando, e agora João Campos (PSB). Cada prefeito que aparecia aqui no alto, a gente colava junto. Devido a tanta insistência e pressão junto com a comunidade, ficamos na mente deles”, relata Kayo, afirmando que, agora, após o anúncio da obra, os olhos do coletivo estão voltados para acompanhar todo o processo de reparo e prazo de entrega do espaço, mas focados também em outra pauta: a ameaça das áreas de risco em tempos de chuvas no Recife.
“A ideia agora é focar no início da construção. Passamos a véspera colando cartazes e mobilizando os moradores, anunciando a vinda da prefeitura para a solenidade (de anúncio). Queríamos o máximo de moradores presentes para que também nos servissem de testemunhas. O nome da creche nem seria esse, era de um outro morador importante para o povo também. Mas a comunidade colocou Dona Cininha, porque além de ela ser uma das pioneiras nessa causa, representa as mulheres, mães e avós que seguram nossa barra com as crianças. Nada mais justo”, afiram Kayo.
Sobre a relação atual com a prefeitura, Kayo afirma que está mais tranquila: “Acho que o tempo de bater de frente deu uma trégua, agora é acompanhar e ouvir o que eles têm a dizer, sem perder nossa voz, é claro, mas na intenção do diálogo pra que não percamos a razão. No dia da solenidade, antes do prefeito chegar, fizemos uma panfletagem e com uma caixa de som, fiquei rodando chamando a comunidade: ‘O prefeito vai estar aqui hoje, às 10h, tem cartolina, tinta, material pra usar, é importante que a comunidade esteja presente’, eu dizia.
O povo desceu e após a solenidade já chamou o prefeito pelo braço pra mostrar a barreira, na mesma hora ele ligou e chamou o pessoal para fazer o orçamento. Em alto e bom som, anunciávamos que estávamos dispostos ao diálogo: ‘Os seguranças que chegarem, ninguém vai dar neles, então respeitem a gente também porque estamos aqui para dialogar. Dessa forma, enviaram o secretário de habitação e um vereador da base aliada. Nos permitiram um espaço de fala no evento. Hoje, aparentemente eles estão dispostos ao diálogo”.