Por Martihene Oliveira
No quilombo Conceição das Crioulas, em Salgueiro, sertão de Pernambuco, a comunicação popular é um talento hereditário que fortalece o território e faz da tecnologia um espaço de debates, educomunicação, ancestralidade e resistência. Apresentadas aos bastidores de uma câmera ainda em 2005, por jovens do quilombo que aprenderam a manusear os equipamentos através de uma formação na associação quilombola, as irmãs Jocicleide (Kêka) e Jocilene Oliveira(Lena) junto a eles, que fundaram o Coletivo Crioulas Vídeo, fizeram do audiovisual uma janela que virou porta no território, provocando e inquietando a comunidade para a mobilização social através da produção de filmes de luta e resistência ancestral.
“Não chegamos no início da formação do Crioulas Vídeo porque na época eu me deslocava da zona rural até o centro de Salgueiro para estudar e não conseguia conciliar, mas a equipe vai sempre se renovando. Entramos em dezembro de 2005 e os alunos que aprenderam desde o ínicio repassaram o conhecimento pra gente. O equipamento que os professores trabalhavam ficou na comunidade e isso possibilitou a continuidade do projeto”, afirma Lena, ao fazer referência ao projeto Identidades, formado por professores que vieram de Portugal em parceria com a Associação Quilombola Conceição das Crioulas, para realizarem formações profissionais no território, entre estas, o contato com o som e a imagem.
Para as irmãs, não adianta ter a história somente contada pelos olhos de fora. Kêka afirma que se o assunto não é compartilhado, pouca gente sabe do fato e, se tem pouca gente para saber disso, há poucas mãos para fortalecer a causa. “Nosso principal objetivo é falar através da nossa visão. A gente buscava de fora, agora a gente fala pra a gente”. É nessa linha que os integrantes do Crioulas Vídeo, provocam e inquietam o território.
O coletivo Crioulas Vídeo documenta, através das imagens, as histórias contadas pelos antigos com o objetivo de manter a memória de seu povo. As técnicas de filmagem, edição, roteiro e a discussão política são as principais ferramentas para isso. Um verdadeiro fascínio para o jovem Hiêgo Moisés, que nasceu dois anos após a criação do grupo. “Nasci em 2007, já com minha mãe sendo uma das integrantes e hoje, dando continuidade, faço o mesmo que os primeiros jovens fizeram em 2005. O objetivo é registrar as lutas e histórias do Conceição, para fazer com que ela não se perca e leve os registros que poderão servir para a orientação das gerações futuras”, afirma ele.
Hiêgo, 16 anos, é filho de Kêka. Para ele, que através de um curso técnico em Agropecuária já desenvolve projetos de pesquisa para a comunidade, a comunicação é o instrumento que visibiliza sua voz. Voz esta, que com a poesia de cordel, leva o adolescente para diversas cidades do território pernambucano. “Uso a poesia como fonte de comunicação para contar histórias e fatos que acontecem na minha comunidade. Escrevo todo tipo de poesia e tenho um cordel digital que falo da minha vivência aqui no quilombo”.
O jovem comunicador faz questão de afirmar que por o quilombo ser o território de uma grande família, o coletivo não seria diferente: a mãe, tias, tios e primos do adolescente realizam comunicação comunitária. Todo mundo tem um vínculo familiar. “O Crioulas Vídeo trouxe vários benefícios para minha vida. Ao ver os vídeos que foram registrados antes de eu nascer, sinto o desejo de buscar nossos direitos e lutar por coisas para melhorar o nosso povo. Dentro do coletivo eu sou o filho, o sobrinho, o primo e o amigo, mas estamos inseridos em um conjunto. Somos uma família só. Nós, do quilombo Conceição das Crioulas, somos descendentes das seis negras que fundaram nossa terra e zelamos por esse convívio familiar”.
Impactos através da comunicação
A comunicação da equipe, que já existe há quase 20 anos, conquistou vários avanços para o território. O coletivo faz questão de se inspirar em diversas lutas da comunidade antes mesmo do Crioulas Vídeo ser fundado como o fato de o quilombo ter conseguido implementar, em 1995, o Ensino Fundamental 2 na comunidade, por exemplo. Antes disso, segundo o grupo, os moradores do quilombo só tinham acesso até a 4ª série e para dar continuidade aos estudos precisavam sair da zona rural e ir até o centro da cidade.
“Fazemos parte da associação quilombola, fazemos parte da comissão de comunicação do nosso território e de outros projetos da comunidade. Como luta nossa, também temos 100% dos professores e gestores das nossas escolas sendo do quilombo. Em um concurso público que houve por aqui, tivemos um quadro bom dos professores da nossa comunidade, a maioria dos professores utilizam os nossos vídeos como ferramenta pedagógica, eles compreendem a importância do coletivo”, afirma Lena.
Todo o aparato aprendido para as técnicas de filmagem tem como principal objetivo dar visibilidade à luta por direitos, fortalecer a identidade quilombola através dos vídeos, resguardando a história oral, seus costumes e suas crenças. É por causa disso que, hoje, o coletivo conta com um grande acervo da história do quilombo Conceição das Crioulas e de outras comunidades quilombolas de Pernambuco, que vai desde o registro de eventos à formações políticas, reivindicações de direitos, dentre outros assuntos de interesse da comunidade.