Conheça a Gelateca, um antigo eletrodoméstico que espalha conhecimento

Praça da 55, no Cabo de Santo Agostinho, recebe iniciativa criada por moradores da cidade para combate à violência urbana

por Martihene Oliveira

Falar de educação no Cabo de Santo Agostinho, cidade da Região Metropolitana do Recife, é uma missão importante. Por isso, diversas iniciativas de comunicação popular surgem na tentativa de corrigir as falhas do Estado, que levaram o Cabo a se tornar, segundo dados de 2022, a 5ª cidade mais violenta do país e a 1ª mais violenta de Pernambuco. Foi neste contexto que um grupo de amigos criou a Gelateca. A iniciativa funciona na Praça da 55, na Cohab, local conhecido no município pelo alto consumo de drogas, mas que também é um importante palco e ponto de cultura periférica. 

Edson Gomes, integrante do Mandato Cidadanista, como o grupo se denomina, explica que Gelateca é a junção de geladeira com biblioteca, uma experiência que não é nova mas está sendo replicada com sucesso no Cabo. Diversos coletivos de comunicação já atuam com essa ferramenta. No Mapa da Mídia Independente e Popular de Pernambuco, por exemplo, é possível encontrar a Jenipapoteca, criada pelo coletivo Jenipapo em Foco, que está fixada no Córrego do Jenipapo, bairro da zona norte recifense. Já na cidade de Abreu e Lima, o coletivo Agitando Pensamentos também coleciona livros em uma geladeira sem eletricidade. Pois bem, no Cabo, a experiência também foi aplicada.

Foto: Edson Gomes/Mandato Cidadanista

Edson, que é professor de design gráfico e de marketing, contou para o Mapa os motivos que levaram o grupo a movimentar a iniciativa: “Nós somos um grupo de amigos, não disputamos ideologia e respeitamos os diferentes pontos de vista entre a gente. Há uma causa maior, entende? Na nossa cidade, conhecida como ‘cidade da morte’, jovens morrem mais do que nascem”. 

O Mandato Cidadanista surgiu em 2018, logo após as eleições. Os amigos estavam inquietos porque, passado o período eleitoral, os problemas seguiam os mesmos. “Não víamos mudanças, o que víamos era só nossos amigos assassinados, mas nada mudava”.

Hoje o grupo possui 22 pessoas entre comunicadores, educadores sociais, engenheiros, empreendedores, professores e outros profissionais, moradores dos bairros São Francisco, Charneca, Ponte dos Carvalhos, Cohab,  Garapu, além dos residentes do Litoral. 

Nestes mais de cinco anos, o grupo já tem uma rotina de funcionamento estabelecida. Segundo Edson, “primeiro fazemos uma pesquisa maior, pelos pontos das nossas comunidades, depois, a gente se junta na casa de alguém e conta toda a nossa rotina, levamos todo o levantamento para o grupo e decidimos as prioridades. Apontamos o que encontramos de errado e voltamos para a comunidade para conversar sobre isso”.

O projeto já reformou calçadas, fez murais onde existia lixo, acionou por diversas vezes o poder público para atender demandas da cidade, dentre outras atividades. No meio disso, a dificuldade de acesso a livros saltou aos olhos. ”Embora já existam alguns resultados, somente crianças e adolescentes são contempladas”. Isso porque, segundo Edson, a maior parte dos projetos é voltada para a rede municipal e essa rede, como na maioria das cidades pernambucanas, só contemplam do maternal ao 9º Ano.

O estudo “Prevenção da violência juvenil no Brasil: uma análise do que funciona” produzido pelo Instituto Igarapé com apoio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), apontou, em 2018, que as taxas de assassinatos de jovens no Brasil cresceram 17% na última década. Quase metade dos índices gerais de homicídio do país, que foi de 56 mil, foi de morte de homens negros com idade entre 15 e 29 anos e com baixo nível de escolaridade. 

Para Edson, dados como estes foram o guindaste para a criação da Gelateca. “Boa parte dos jovens que morrem é de pessoas que não têm acesso à educação. Colocamos a geladeira na praça justamente para alcançar esse público. Geralmente nas praças a gente vê muita gente usando drogas. Na Praça da 55, agora, a gente vê grupos que se apresentam com um pouco mais de respeito ao espaço. Colocamos em um local estratégico justamente por causa disso”.

Para produzir a Gelateca, o Mandato Cidadanista foi atrás de reforço, buscou ajuda com concurseiros, vestibulandos e outras pessoas com acesso a materiais didáticos que pudessem ser doados. “Também procuramos uma pessoa para doar a geladeira. Assim que conseguimos, fizemos cotinha e pintamos. Uma barbearia em frente à praça foi o nosso ponto de acolhimento para fixar a Gelateca e, a partir dela, uma pessoa para tomar conta”. No antigo eletrodoméstico que energiza conhecimento, é possível encontrar não somente livros de romance e literatura, mas também exemplares de questões técnicas, eletromecânica, de comunicação social, História e muito mais.

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