Mídia independente e popular de Pernambuco é retrato de desafios, resistência e potencial periférico

Pesquisa revela perfil dos coletivos, dificuldades de financiamento e a importância de dar voz a quem foi historicamente silenciado pelos meios tradicionais

Uma pesquisa detalhada para o Mapa da Mídia Independente e Popular de Pernambuco, entre outubro de 2024 e janeiro de 2025, realizada pelo Coletivo Filhas do Vento, lança luz sobre o panorama das mídias independentes no estado de Pernambuco. O estudo qualitativo buscou compreender as especificidades dos processos de produção de comunicação nesses espaços.

O objetivo geral da pesquisa foi entender as particularidades da produção de comunicação dos coletivos do Mapa. Dessa forma, a pesquisa contou com entrevistas sobre potencialidades e dificuldades, análise da relação entre marcadores sociais como gênero, raça, classe e sexualidade, produção de mídia independente, e como essas produções se conectam com pautas e atuações de movimentos sociais.

O Mapa é uma base de dados online que disponibiliza informações sobre coletivos de comunicação popular, como data de fundação, número de integrantes, temas abordados, periodicidade, formas de financiamento, redes sociais e contatos diretos. O objetivo do Mapa é visibilizar e fortalecer as ações de organizações locais, especialmente em comunidades periféricas, ribeirinhas, quilombolas e indígenas. 

A pesquisa envolveu análise do Mapa, aplicação de um formulário via Google Forms com representantes de grupos e coletivos, e análise dos resultados para a produção do relatório.

O universo da pesquisa foi composto por 82 grupos e coletivos listados no Mapa da Mídia Independente. Buscas ativas foram realizadas entre novembro de 2024 e janeiro de 2025 para contatar representantes, utilizando WhatsApp, telefone, e-mail, Instagram e Facebook. Dos 82 grupos aptos, 30 concluíram o preenchimento do formulário, representando 36,59% do universo total.

As pesquisadoras enfrentaram dificuldades na adesão, incluindo a ausência de retorno de coletivos ativos, grupos que confirmaram participação mas não responderam dentro do prazo, e coletivos cujos canais de contato estavam inativos ou sem atividade.

Perfil dos Grupos e Coletivos que responderam

Entre os 30 grupos que responderam ao formulário, a análise do perfil revelou dados importantes. A divisão de gênero entre os respondentes foi igualitária, com 50% de mulheres e 50% de homens. A maioria dos grupos (23,3%) surgiu em 2016, indicando que grande parte dos pesquisados tem menos de 10 anos de atuação. O ano de 2016 é destacado pelo seu contexto político, marcado pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o avanço da extrema direita e do conservadorismo, e a eclosão de manifestações e o surgimento de grupos contra discriminações e desigualdades, como a Marcha das Mulheres Negras de 2015, que impulsionou o surgimento de coletivos de mulheres negras.

A grande maioria dos grupos (76,67%) é pequena, com menos de 10 integrantes. Apesar do tamanho reduzido, eles desenvolvem atividades diversas que conectam estratégias de comunicação popular com ações de incidência política em seus territórios. Dentre as ações, destacam-se cineclubes, festivais, reportagens, intervenções culturais, oficinas, atividades formativas, lazer, encontros, ações socioambientais e de solidariedade, produção de documentários, podcasts e programas de rádio.

Diversidade nos Grupos e Coletivos

A pesquisa examinou a diversidade na composição dos 30 grupos respondentes, que totalizam 278 pessoas.

Gênero

58,27% dos integrantes são mulheres. Este dado é considerado relevante, pois a mídia independente é uma ferramenta importante no enfrentamento às desigualdades e na visibilidade de sujeitos historicamente silenciados. A presença de quase 60% de mulheres é vista como uma oportunidade para a produção de conteúdos que abordem temas que atravessam suas vidas, marcadas por desigualdades, no entanto, a análise aponta que dois grupos não possuem mulheres em sua composição, quatro são totalmente compostos por mulheres, e em seis grupos, elas ainda são minoria.

População LGBTQIAPN+

A pesquisa identificou que 25,9% das pessoas que constroem os grupos são LGBTQIAPN+. Dos 30 coletivos respondentes, oito não possuem nenhuma pessoa LGBTQIAPN+, e em 12 dos 22 grupos com presença LGBTQIAPN+, essas pessoas ainda são minoria.

Raça 

A composição racial dos grupos reflete a do estado, com 66,91% de integrantes se identificando como negros, próximo ao percentual de 65,67% da população negra em Pernambuco (IBGE 2022). Isso reforça o fato de que a mídia independente é construída por sujeitos historicamente excluídos dos canais hegemônicos. A maioria dos grupos é de periferia e apresenta perspectivas desses territórios, que são majoritariamente negros. Apenas dois grupos afirmaram não ter pessoas negras em sua composição, sendo um deles o coletivo “Thul’se Audiovisual”, formado por pessoas indígenas.

Pessoas com Deficiência (PCD)

A presença de PCDs nos grupos é muito baixa, representando apenas 2,16% da composição. Dados sobre a população com deficiência em Pernambuco mostram que é o sexto estado com mais PCDs (10,1% da população), com alta taxa de desemprego (74,5%) e analfabetismo (28,4%).Recife é a capital com maior percentual de PCDs (aproximadamente 11%) e onde mais estão fora do ambiente educacional e de trabalho.

Uma barreira central é a insuficiência de acessibilidade comunicacional e estrutural. A baixa presença de PCDs nos grupos de mídia independente aponta para a necessidade de aprofundar estratégias de inclusão não apenas na produção de conteúdo acessível, mas garantindo a participação dessas pessoas na própria produção.

Perfil Institucional e Abrangência

No que se refere à organização institucional, a grande maioria dos grupos (73,3%) é composta por coletivos da sociedade civil não formalizados, ou seja, sem CNPJ, Essa falta de formalização gera dificuldades no acesso a recursos, limitação para participar de editais e espaços de controle social. A formalização exige um amadurecimento institucional, muitas vezes ausente devido à falta de estrutura, sustentabilidade financeira e suporte profissional. Quanto ao modelo de gestão, a maioria afirma se gerir de forma autogestionada. Embora este modelo priorize a democracia interna e a tomada de decisões coletivas, pode limitar a atuação e o crescimento pela falta de uma estrutura organizativa delimitada.

A formação das pessoas responsáveis pelos grupos é diversa. A maioria possui ensino superior completo ou está cursando, concentrando-se nas áreas de ciências humanas, sociais e comunicação. 30% dos respondentes afirmaram ter um profissional de jornalismo na liderança. Seis grupos registraram líderes com ensino médio, e um com ensino fundamental.

A abrangência de atuação predominante é local (50%), concentrando-se em territórios, majoritariamente periféricos. Esse dado, combinado com o perfil de grupos pequenos e com frágeis estruturas, sinaliza que as produções de mídia independente em Pernambuco são localizadas em áreas periféricas. Seguidos dos grupos de atuação local, estão aqueles com incidência nacional (23,3%). Quase metade desses grupos com atuação nacional (44,44%) são formalizados (possuem CNPJ) e 44,4% atuam através de coordenações colegiadas, indicando uma estrutura organizativa mais madura.

Geograficamente, embora haja produções nas quatro regiões do estado, há uma maior concentração na Região Metropolitana do Recife (73,33% dos respondentes).

As áreas temáticas de atuação confirmam o foco em comunicar a realidade de sujeitos periféricos. As principais áreas são jornalismo (30%), comunicação popular (20%) e juventudes (10%). Isso revela que os conteúdos são produzidos por uma juventude que usa a comunicação popular para abordar realidades silenciadas pelos meios hegemônicos.

O público alcançado prioritariamente são pessoas periféricas (46,7%). Este dado reforça o caráter contra-hegemônico dessas produções, que se contrapõem aos discursos das classes dominantes e são pensadas, executadas e protagonizadas por quem historicamente esteve à margem: a população periférica, negra e pobre. 

Além da população periférica, outros públicos que se interseccionam, como jovens, população negra, mulheres, LGBTQIAPN+, PCDs, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros povos tradicionais, também são alcançados.

Histórico, Motivações e Dificuldades

Um ponto em comum entre os grupos é a motivação para sua criação: dar voz a pautas de sujeitos periféricos silenciados pelos meios de comunicação tradicionais.. O objetivo é mostrar a periferia sob o olhar da própria periferia, desfazendo estereótipos apresentados pela mídia tradicional. Temas predominantes abordam questões da vida da população periférica e negra, como acesso à água, transporte, lazer, enfrentamento à violência de gênero e raça, racismo religioso e ambiental, injustiças climáticas, cobrança por políticas públicas, denúncia de violação de direitos e enfrentamento às desigualdades sociais.

Essas mídias buscam apresentar um contradiscurso à mídia hegemônica, que muitas vezes retrata a população negra, jovem e periférica a partir de estereótipos racistas, sexistas e classistas. A importância não está apenas na representatividade (ter essas pessoas nas produções), mas na representação (como elas são apresentadas e os significados a elas associados). O Coletivo Obirin, por exemplo, destaca a necessidade de um espaço de representatividade negra na comunicação para dar visibilidade a assuntos pertinentes ao povo negro de Pernambuco.

As ações desses grupos e coletivos frequentemente extrapolam o universo online e têm incidência direta nos territórios. Eles promovem ações em áreas negligenciadas pelo poder público, levando cultura, educação, lazer e conhecimento, através da comunicação off-line..

Um dado preocupante é que 43,33% dos grupos já precisaram interromper suas atividades em algum momento. Desses, 38,46% informaram que a interrupção foi devido à ausência de recursos financeiros. Essa dificuldade econômica, que afeta jovens negros de periferia que integram esses grupos, impacta diretamente suas ações políticas. Outras causas de interrupção estão atreladas ao fator socioeconômico, como a ausência de segurança no território, a falta de emprego dos integrantes, a dificuldade de conciliar a militância com outras demandas da vida e o impacto da pandemia de Covid-19.

A principal dificuldade enfrentada por quase a totalidade dos grupos é o acesso a recursos financeiros.. A insuficiência de recursos impacta diretamente na execução das atividades e foi apontada por 86,67% dos grupos. Quando questionados especificamente sobre dificuldades no acesso a recursos, o percentual foi ainda maior: 93,3% afirmaram ter essa dificuldade. 

As fontes de recursos podem vir de diversas fontes (públicas e privadas), mas o acesso é limitado por barreiras como a burocracia, a falta de CNPJ, o desconhecimento sobre editais, editais inadequados à realidade do grupo, a ausência de profissional capacitado para mobilizar recursos e a falta de tempo para escrita de projetos.

Outras dificuldades incluem a necessidade de profissionalização dos integrantes, a limitação em conciliar o tempo dedicado à ação política com demandas pessoais, a necessidade de planejamento estratégico, a ausência de infraestrutura e a limitação do trabalho voluntário, já que os integrantes precisam trabalhar para seu sustento. 

Sustentabilidade e Alcance

A dificuldade no acesso a recursos reflete-se na sustentabilidade dos grupos: 36,7% afirmam funcionar com recursos próprios. Em segundo lugar, com 16,7%, estão os grupos que recebem financiamento de organizações filantrópicas. Apenas 10% acessam emendas parlamentares, 10% acessam financiamento de órgãos públicos, 10% recebem doações e 10% destacam o voluntariado. Esse cenário impacta a receita: 56,7% afirmaram não ter tido recursos para atividades em 2023, e apenas 13,3% atingiram receita superior a 50 mil no ano.

Apesar das dificuldades, os grupos identificam potencialidades que mantêm sua atuação. A principal é a capacidade de resistência. Eles relatam avanços como a ampliação de temáticas e visibilidade, aumento do público, maior conexão e fortalecimento político do público, estabelecimento de redes e parcerias, e acesso a recursos.

No que se refere ao alcance, embora mídias tradicionais tenham maior alcance quantitativo, as mídias independentes se destacam por seu caráter formativo e a profunda conexão qualitativa com seu público.  83,3% dos grupos afirmam conseguir alcançar seus públicos. O público é majoritariamente jovem (70% entre 18 e 29 anos).

Os grupos possuem fidelização do público. Os principais motivos que vinculam o público são a identificação com os valores e causas defendidas (50%) e a relação com o território (23,3%). 50% dos grupos afirmam que seu público consome o conteúdo por completo, demonstrando intensa participação e alinhamento com os objetivos políticos e sociais dos grupos.

Para alcançar seus públicos, os grupos utilizam redes sociais (sendo o Instagram a principal).

No entanto, eles também desenvolvem estratégias próprias para superar os limites das redes e enfrentar assimetrias. Essas estratégias incluem mobilização nos territórios e fora deles, venda de jornais, sensibilização de amigos e comunidade, promoção de atividades presenciais (encontros, rodas de conversa, cine debates, ações sociais e formativas), o “boca a boca” (busca ativa) e o uso do WhatsApp.

Recomendações para Fortalecimento

A pesquisa aponta demandas e dificuldades comuns que impactam o enfraquecimento institucional dos grupos. Sugestões são apresentadas para fortalecer a atuação desses coletivos:

Promoção de atividades formativas sobre escrita e gestão de projetos sociais, e mobilização de recursos.

Promoção de atividades formativas e oferta de assessoria jurídica sobre processos de formalização institucional.

Criação de um Fundo de financiamento específico para mídias independentes de Pernambuco, com critérios menos burocráticos para facilitar o acesso de grupos menores e periféricos. 

O relatório conclui que, apesar das dificuldades, a mídia independente em Pernambuco representa um espaço vital de resistência, diversidade e protagonismo para sujeitos e territórios historicamente marginalizados, desempenhando um papel crucial na construção de narrativas contra-hegemônicas e no fortalecimento comunitário

Confira o relatório completo.